Sofri um acidente de carro que me deixou paraplégica aos 18 anos. Final da adolescência e início da fase adulta, cheia de planos, milhões de expectativas, querendo sugar tudo que a vida estava me oferecendo. Nessa época, já estava no 2º semestre da faculdade de enfermagem. Até então tudo “normal”, uma vida comum como qualquer outro adolescente... De repente, uma mudança radical. Saí de casa andando e depois de mais ou menos um mês voltaria conduzindo uma cadeira de rodas. Precisava me adaptar aquela nova vida, a minha nova forma de andar, a uma nova maneira de viver. Sempre procurei ter a maior independência possível.

Nisso o tempo foi passando e a adolescência indo embora, mas como qualquer pessoa da minha idade, paquerava, namorava e esse assunto pós-lesão era o mais difícil de pensar em como resolver. Tinha apenas 18 anos, não tinha maturidade e experiência como “matrixiana”, além das dúvidas e questionamentos típicos da adolescência. Será que eu poderia paquerar um garoto? Será que iria despertar interesse em alguém mesmo numa cadeira de rodas? Será que numa cadeira de rodas eu iria ter um namorado? Como os garotos iriam olhar pra mim? Como seria paquerar, namorar e tudo mais sem ter um corpinho “perfeito”? Talvez a área sentimental tenha sido o maior desafio. Eu não tinha namorado quando fiquei paraplégica e nem pretendia fica solteira o resto da minha vida.

Comigo foi bem diferente, como quem é meu leitor há muito tempo já sabe. Entrei na adolescência já montado no meu cavalo. E foi difícil pra mim entender como o meus grandes amigos da infância já não me chamavam mais para ir ao cinema, como as meninas do bairro, muito ligadas a mim, não se aproximavam mais. E tudo foi ficando mais complexo à medida que novos termos começavam a circular nas rodas de conversa: sexo e namoro. Os meninos, aos poucos, iam contando que havia “pegado” a gatinha tal, que haviam beijado a fulana, que haviam “arrastado” cicrana para não sei onde.

De “minino bão”, confesso que fui ficando um “minino triste”. Não há rodeios, meu povo, adolescência é cruel para o deficiente uma vez que independência para ir onde quiser, sobretudo nas festas onde rolam a paqueras, e aspectos físicos “bacanas”, o que não é nosso forte, falam mais alto... se é que não gritam, né, não?!

A mudança física é complicada. Vivemos numa sociedade que nos cobra um corpo perfeito. Ao me tornar uma cadeirante, sofri mudanças principalmente em minhas pernas que afinaram e a musculatura se tornou flácida. A comparação com as meninas que não eram da matrix era inevitável. Elas andavam, eram consideradas “normais”, podiam dançar, correr, não dariam o mesmo trabalho que eu podia dar com minha limitação. Sempre fui tímida e as paqueras ficavam na troca de olhares, mas sempre receosa por não ter certeza se a paquera era comigo ou não. Meus amigos me cercavam o tempo inteiro numa forma de demonstrar carinho e cuidado e até isso dificultava uma aproximação. Sempre procurei seguir adiante sem criar muitos questionamentos sobre minha vida amorosa e minha condição física, acredito que isso tenha me ajudado.

Meu primeiro namorado após a lesão ocorreu mais ou menos dois anos depois. Foi muito legal porque tudo aconteceu naturalmente. Houve a fase da paquera, da gente se conhecer. Nós dois trabalhávamos na mesma empresa e nos conhecemos lá. Ele e a família dele nunca me trataram como alguém diferente, mas o relacionamento não durou muito. O namoro acabou, mas não por eu ser uma cadeirante. Pra mim o mais difícil foi iniciar a relação sexual. Não sabia como seria, como deveria agir, de que forma teria prazer, se eu seria capaz de dar prazer ao meu parceiro e isso sim demorou bastante tempo pra que eu me sentisse preparada.

Apesar de me sentir sozinho, as pessoas gostavam de CONVERSAR comigo, sobretudo a mulherada, que queria me contar... dos outros meninos Carente. Nesta época, minha mãe me chamava “carinhosamente” de “pé de santeiro” Rindo a toa. Eu me apaixonava demais, mas era sempre preterido pelos meninos que jogavam bola, pelos “pé de valsa” dos bailinhos. A minha vida, então, era ler... lia tudo, romances, aventuras, história, bula de remédio. E estudava também. Algo me dizia que o meu “momento do amor” iria tardar mais, mas, com paciência, ele iria chegar.

Não vou mentir. Foi barra, foi angustiante. Eu achava que jamais conseguiria atrair alguém com meus cambitos finos, com um jeito meio torto de ser. Contudo, me preparando intelectualmente, sem noção, fui formando minha personalidade que, mais tarde, me ajudaria a ter, digamos assim, um bocadinho de namoradas que dariam para lotar um fusca Convencido.

Claro que podemos e vamos conseguir ter um relacionamento mesmo sendo da Matrix. Quando eu me tornei cadeirante eu não sabia como iria ser um relacionamento, mas deixei o tempo passar e a vida me conduzir. O preconceito existe, o desconhecimento também. Tem muita gente por aí que, às vezes, se interessa por um de nós e por não saber como agir não se aproxima. Cabe a nós também não tomarmos a posição de vítima e mostrar a todos que somos normais como qualquer outro ser humano deste mundo.

Não é uma tarefa fácil o início de um relacionamento entre uma “malacabada(o)” e um “infiltrado(a)”, por exemplo. Precisamos apresentar a eles nosso mundo e provar que podemos ser um pareceiro(a) à altura de alguém que não faz parte da Matrix. Existem ainda os amigos e familiares do “candidato” (a), que, na maioria dos casos, são pessoas que não estão acostumados a conviver conosco. São pessoas que, geralmente, tem a imagem do deficiente ineficiente, que fica em casa se lamentando sem pôr a cara no mundo sem mostrar nossa capacidade. São pessoas ignorantes a nosso respeito.

Paciência, talvez essa seja a melhor palavra pra esse momento. Somos alguém que eles consideram diferente, o que não quer dizer que não seremos bem-vindos. Procuro não perder tempo pensando se fulano ou beltrano não concorda com o relacionamento, se meu parceiro me aceita nada mais importa. Esse é outro ponto, o parceiro, se ele não é da Matrix isso quer dizer que nós somos novidades e mais uma vez a paciência é fundamental. Um bom papo, disponibilidade, sinceridade e boa vontade podem ajudar bastante.


E a minha primeira namorada veio quando eu já era um “senhor”, com 21 anos Muito triste. Para tirar o atraso, na boa, minha gente, ela era uma das mais lindas e cobiçadas garotas da faculdade de jornalismo. E aprendemos muito da vida juntos. Ah, sim, não fui eu quem chegou nela, ela é que praticamente me agarrou.

Acho que conquistei a “Lu” com o que eu tenho até hoje de melhor: papo furado, criatividade, romantismo e intensidade. Aquela garota levou minha estima para a estratosfera. Sofri muita resistência por parte da família dela em me “aceitar”, sobretudo do pai, o que se repetiria outras vezes, com outras namoradas.

O homem deficiente, muitas vezes, é visto como alguém que não pode “proteger” a donzela. O que é uma balela, uma vez que ser protetor nada tem a ver com ser parrudo, com ser uma pessoa “andante”. Pra mim, com inteligência, com dedicação, com atenção se garante muito mais aconchego do que com porte físico.

De lá para cá, acho que aprendi o “caminho das pedras” e tirei o atraso Muito feliz. Sei bem o que posso e o que não posso. Sei o quando o gostar, o amar, o se envolver tem muito pouco a ver com características apenas físicas. Atualmente, com a internet, com as redes de relacionamentos, acho que tudo está um pouco mais fácil. Em toda parte tem chinelo velho para pés cascudos. O que não dá é pra se vestir de impotente, de “óh céus, óh vida” nunca terei ninguém. Todo mundo quer amar, todo mundo quer ter alguém. Basta a gente “se preparar” para merecer grandes amores.

Penso que um relacionamento não pode ser baseado na condição física de um ou de outro. Namorar, casar, conviver com alguém vai muito mais além do ser ou não “perfeito” Aceitar-nos exatamente como somos deve ser o primeiro passo. Ninguém vai se sentir feliz ao lado de outro que não se aceita. Podemos e somos lindos e por que não dizer sexy usando uma cadeira de rodas, muletas, bengala, tendo ou não um braço, uma perna ou qualquer outra deficiência?

Estar disposto a se mostrar pro outro vale a pena. Vai sem medo, sem receio de quebrar a cara, afinal sendo ou não da matrix sofrer uma desilusão amorosa faz parte da vida. Procurar encarar as situações desagradáveis, que inevitavelmente irão acontecer (e elas acontecem mesmo, não importa se você é ou não um malacabado) como amadurecimento ameniza mais a dor.

Nunca se colocar na posição de vítima, seja em relação ao coração ou a qualquer assunto das nossas vidas. Penso que um relacionamento vai longe se existir afinidade, respeito, lealdade, desejo e admiração. E despertar desejo é possível...criatividade é tudo!

No dia em que tomei consciência do que eu era, do meu potencial como homem, como amante, como um cara capaz de fazer uma mulher feliz, tudo ficou mais fácil. A adolescência e começo da juventude podem ser menos complicados se a gente conseguir acalmar a expectativa de que tudo aconteça de imediato e se a gente tiver a noção de que precisamos ter “diferenciais” em relação aos fortões, aos loiros de olhos azuis, as dançarinos natos, aos surfistas bronzeados.

Porém, o pior que pode acontecer é se travestir de coitado eterno. As pessoas se escolhem, se acham, se atraem e se desligam, independentemente da condição física. E esteja preparado para ser o “pé” ou ser a “bunda” na sua vida amorosa. É assim com tudo mundo. Mas também se prepara para viver grande amores... basta você querer e fazer por onde ser amado.



Fonte = http://assimcomovoce.folha.blog.uol.com.br/